quarta-feira, 17 de março de 2010

amnésia: esquecimento e lembranças

A amnésia que eu vejo em meus pacientes após um acidente cerebral, na maior parte das vezes, pouco se parece com a síndrome retratada em Hollywood. O cinema em geral mostra casos de pessoas que esqueceram tudo o que já viveram: 'Onde estou?', 'Quem sou?'. Essa é a amnésia retrógrada - apaga tudo dalí pra trás.

Isso aí até existe, mas a amnésia mais comum é aquela igual a da peixinha Dori, do filme 'Procurando Nemo': ela é inteligente, sabe quem é, lembra coisas do passado, mas não consegue guardar coisas da história atual; é um problema de memória recente. Essa se chama amnésia anterógrada.

E é isso que acontece com os meus pacientes: desde que tiveram um acidente eles tem um defeito no registro de novas informações. Então, eles se lembram em geral muito bem de tudo que ocorreu antes do acidente (salvo um apagão de logo antes e logo depois da doença em si), mas não conseguem formar novas memórias de forma eficiente. Assim, a vida desde o acidente vira um amontoado de fatos e informações meio isoladas, desorganizadas cronologicamente. E muita coisa nem sequer amontoa. Apaga mesmo e é como se nunca tivesse acontecido.

Os casos de amnésia anterógrada total existem, mas são raros: é como se a pessoa tivesse parado em um certo dia ou ano de sua vida, e não aprende mais informações desde então. Fica parada em uma época, sem registro de que coisas acontecem e de que o tempo passa. O caso mais famoso dessa patologia foi o paciente HM, de quem eu falei aqui nesse post de 2008, quando ele morreu.

A amnésia anterógrada mais comum, entretanto, não é total. A mais típica é, de novo, muito bem retratada na peixinha Dori que consegue aprender algumas coisas mas não outras. O que ela usa e repete toda hora se fixa de uma forma um pouco melhor, mas o que não usa ou não chama muito a atenção se apaga.

E daí se mostra um fenômeno muito legal, pois apesar de ser frequente também entre as pessoas normais, ele é muito mais acentuado, quase caricato, entre as pessoas amnésicas: é o poder de fixação da memória emocional.

Todo mundo lembra melhor do que interessa, certo? Mas pra essas pessoas não é uma questão de lembrar melhor. Funciona mais como: eu só me lembro do que tem muito valor emocional, ou porque me interessa muito, ou porque me assustou, ou porque eu detestei. Dessa forma, a vida dos amnésicos acaba se orientando por aquilo que é rotineiro e se repete exatamente igual todo dia e fora isso há uma coleção de eventos marcantes. O resto vai e vem no amontoado de eventos desordenados no tempo.

Tudo isso pra contar que acabei de conhecer um homem de 60 anos que sofreu um acidente de carro aos 20. O impacto cerebral foi gravíssimo e ele ficou bem amnésico, assim desse jeitinho mais comum da gente ver: amnésia anterógrada importante mas não total. E isso faz parte da vida dele há 40 anos!

Nesse tempo (dos 20 aos 60 anos) ele teve muita ajuda da familia e amigos e realmente conseguiu uma vida plena: terminou a faculdade, trabalhou, namorou, casou, teve 2 filhos, fez amigos, viajou, enterrou pessoas queridas, viu governos entrarem e saírem, viu filmagens e re-filmagens no cinema e nas novelas da Globo, viu o homem pisar na lua, viu o muro de Berlim cair, viu guerras no mundo, tecnologia, internet, revoluções sociais, mudanças de comportamento, o vai e vem das calças boca de sino e dos carros da Volkswagen.

Na consulta de hoje, como eu costumo fazer com meus pacientes, eu risquei uma linha em uma folha, coloquei o ano de seu nascimento em um extremo e o ano atual no outro, e pedi para que ele apontasse os fatos e eventos que mais o marcaram na vida. Não foi muita surpresa o que aconteceu: até a data do acidente ele marcou mortes, entradas e saídas nas escolas, viagens e o próprio desastre de carro. De lá pra frente, ele marcou sua vida em namoradas, paixões não-correspondidas, uniões e separações. Depois de eu insistir um pouco ele conseguiu fazer umas contas e marcou também o ano de nascimento dos filhos.

Nenhuma só palavra sobre trabalho, perrengues diários, desavenças, pequenos triunfos, grandes feitos, doenças, mortes, nada! Só amores e desamores. Foi isso que sua memória parca selecionou como importante pra ser guardado apesar da deficiência.

Fiquei aqui pensando: da vida a gente não leva nada. E mesmo em vida a gente devia carregar só o que realmente importa...
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8 comentários:

naninha disse...

Nossa, acho que sou um pouco Dori. Vou guardar seu pensameto, e tentar carregar só o que realmente importa. Lindo o post!

mélis disse...

aaaaai
morri!

Lavi disse...

Ia escrever uma coisa, mas esqueci

Silvinha disse...

continue a nadar, continue a nadar, continue a nadar...

giacca, synbad, tchuca... disse...

a pessoa q tem essa amnesia consegue ter nocao do tempo passando? ou fica com a sensacao de q o tempo passa somente qdo se sucedem alguns acontecimentos marcantes? caraca, q desgraca... ainda bem q a minha memoria eh uma bencao!...
a pessoa q tem essa amnesia consegue ter nocao do tempo passando?

Larissa Furtado disse...

Cumpleaños feliz! Foi isso que desejei (hoje!) para uma pessoa que tenho grande afeto! Irritantemente comprometida com o trabalho (muito exagero, é sério!), ela começou a descrever o dia de hoje: muito simples, ensolarado, com os filhos, marido e uma linda vista da Ilhabela. Para minha surpresa, ela disse uma frase exatamente como a sua: "só levamos isso da vida!". Era muita felicidade! Me contagiou! Viva os mínimos momentos, não é? E também a nova idade que nos inunda de bom senso e sabedoria... Beijos e abraços contagiantes

Atelier Ferreira disse...

Parabéns por seu texto. Estou passando por esse processo e vc foi bem claro. Minhas dificuldades para memória recentes são muitas. Lembro que sofri uma esquemia transitória e após isso um grande trauma emocional. Hoje tenho que andar com papel e caneta para anotar tudo que preciso...mas as vezes esqueço até o papel e caneta rsrsrsrsrs

Emanoel Rodrigues de Melo Filho disse...

Se eu adoecesse gostaria ter ser cuidado por alguém assim, com essa sensibilidade. Parabéns