sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Nada como um dia após o outro

Todo dia acorda o mesmo dia. Não um dia parecido com o outro ou igual ao anterior. Pra dizer que é parecido ou igual, você precisa poder comparar. Precisa lembrar do que acabou de passar e verificar a semelhança. Se você não lembra do que acabou de passar, todo dia é o mesmo dia.

No início dos anos 50 um homem precisou de uma cirurgia no cérebro pra se livrar das crises epilépticas que consumiam aos poucos a vida de dentro dele. Os médicos não sabiam, mas essa cirurgia consumiu o resto da vida dele, pra ele. O paciente HM, como o "caso" ficou conhecido mundialmente no meio científico, perdeu a capacidade de adquirir novas memórias, de perceber que o tempo passa e que a vida continua.
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A vida não pára? Pra ele parou. Lembrava-se de tudo que já havia passado, de quem era e como tinha chegado até ali, mas era só. Parou numa época que não ia passar. Congelou a consciência que poderia ter de si mesmo.

O HM passou a viver um eterno Feitiço do Tempo sem a consciência dos erros e acertos dos amanheceres anteriores. Sem a chance de corrigir ou optar por errar de novo. Viveu o resto dos dias num eterno presente, com eventuais momentos de susto ao olhar no espelho e ver seu próprio rosto envelhecido pelos anos que não sabia ter vivido. Desconforto aterrorizador, mas felizmente passageiro, que ia se dissolvendo na amnésia em um instante.

Hoje li a notícia de que ele se foi. A pessoa que mais ensinou ao mundo sobre a memória humana se foi. Sem se lembrar de um único dia, desde que passou a ser do mundo. Isso aqui vai muito além do meu alcance. Seria pretensiosa demais se tentasse filosofar sobre a vida. Mas não posso deixar de falar desse meu pensamento recorrente de que a vida da gente não é nada sem os outros. Quem dá sentido pra nossa vida não somos só nós mesmos. Esse cara viveu comigo bem próximo nos últimos 15 anos. Ele já não fazia mais parte da própria vida, mas foi personagem fundamental da minha e de tanta gente junto comigo. E se o sentido da vida se dá primordialmente na nossa relação com os outros, talvez eu consiga lamentar menos pelas últimas décadas de vida do amigo HM. Valeu aí, Henry! Obrigada mesmo. Pra sempre você vai morar aqui, ó!
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6 comentários:

Thiago Rivero disse...

Aiii q foda!
que merda!!!!!!!!!!!!!!!!!!

sem çomentários... talvez ele fosse o çara mais sortudo de nao lembrar nada...tipo uma eterna amnesia alçooliça sem ressaça moral

Monica Miranda disse...

emocionante Sil, com certeza ele foi (e é) parte da nossa história de vida, do nosso caminho....cruzesssss q coisa doida esse sentimento doido como se fosse um parente muito proximo

Pri em York disse...

Têm vidas que valem mil vidas

tudocertinhoentaotabom.blogspot.com disse...

Nossa, que coisa, fiquei tão triste com a notícia que parecia ser um amigo, um parceirão (próximo)...porém, não só parecia como de fato era! Como vc bem escreveu um grande companheiro, um mestre no nosso aprendizado acadêmico e de vida!!! Sil, parabéns pelo seu texto, belíssimo, creio que reflete o sentimento de todos nós!

giacca, synbad, tchuca... disse...

esse post eu ouvi antes de ler e mesmo assim achei emocionante.
sil, parabéns, teus textos estão cada vez melhores...
bjs

Thunderstorms, dreams and conversations disse...

Ai Ia, marvellous and marejados.
bjo