Ontem eu tive um intervalo no consultório e fui tomar um café na padaria do Benjamin, alí em Higienópolis. O lugar é uma delícia, vive cheio, é o 'fervo'.
A única mesa vaga era ao lado de um grupo composto por um pai de trinta e tantos com dois filhos pequenos - um de uns 5 anos e outro de um ano e pouco - e uma babá. A moça tentava em vão chamar a atenção de um dos meninos para que ele tomasse um gole de suco de melancia. O pai tinha o filho menor no colo e o olhava maravilhado e orgulhoso. O pequeno piscava com força os olhos azuis e balbuciava algumas palavrinhas enquanto mastigava/chupava um pedaço de algo que parecia ter sido um pão de queijo.
Fui chegando com a minha xícara e uma revista e quando cruzei o olhar com o menino menor ele abriu um sorrisão banguela e me 'ofereceu' o que quer que fosse que estava comendo. Conquistou meu coração na hora!
Acabei puxando prosa com o pequeno que, em dois segundos estava no meu colo, espalhando pedacinhos babados de sua comidinha não-identificável na minha roupa. O pai aproveitou o intervalo pra tomar seu suco de laranja que parecia estar lá há tempos dado o grau de sedimentação da polpa no fundo da jarra. Serviu o seu copo e o da babá. Esta, não levando qualquer ibope com o mais velho, havia desistido de alimentá-lo e apenas o observava enquanto ele alisava a parede com o guardanapo, ininterruptamente.
Perguntei ao pai o nome das crianças e os cumprimentei repetindo seus nomes. O pequeno, ainda no meu colo, me olhou sorrindo em retribuição ao 'oi', mas o mais velho não se voltou e sequer parou o que estava fazendo. Procurando justificar o pouco caso do filho ou talvez me consolar, o pai me contou que ele era autista. "Ele tem um pouco de autismo", foi a frase exata que ele usou.
Tudo que consegui fazer foi tentar fazer cara de nada e perguntar se era tranquila a convivência dos irmãos. O pai me disse que sim, que o mais velho tinha uma forma branda de autismo, que tolerava bem a insistência do irmãozinho e chegava até mesmo a aceitar que ele o tocasse. "Eles brincam meio paralelamente, ele não dá muita bola, mas o pequeno aprendeu a respeitar o jeito do irmão".
O pai também me disse que tinha sido muito difícil descobrir o que o menino tinha, que ele só recebeu o diagnóstico com quase 3 anos, mas que ele e a esposa sabiam desde poucos meses que havia alguma coisa errada. "Depois que a gente teve o diagnóstico a gente resolveu ter outro bebê, porque senão a gente nunca ia saber como era ter um filho de verdade".
Fiz que sim com a cabeça e sorri praquele homem na minha frente. Não me ocorreu nenhuma palavra. Ele sorriu de volta e virou-se pra terminar o suco. Pouco me lembro do que aconteceu depois, mas sei que eu ainda brinquei um pouquinho com o menininho no meu colo até que ele resolveu descer e correr; logo eles se despediram e se foram.
Acho que enquanto eu viver eu vou me sentir inepta pra comentar sobre essa história.
.
12 comentários:
caraca..."não saberíamos o que é ter um filho de verdade".
morri.morri.
Em minutos vc tava com a criança e sua comidinha babada no seu colo ( nessa hora EU me senti autista e também pensei que o cara do radiohead tava lá vendo isso e fez a musica Creep pra vc: SO F#%&ing special!)
post lindo de coisa delicada que só uma beholder como vc enxerga.
A Cy já escreveu exatamente o que eu vim aqui pra escrever... Ah, e parabéns pelo Oscar de "Melhor Final de Post", na categoria "Não Que o Restante do Post Não Fosse Ótimo Também, Mas Caraca, O Último Parágrafo Foi Punk" (não é uma estatueta muito conhecida ainda, mas parece que dá um bom peso de papel)
foda, conheci um cara aqui da alcatel que falava que a melhor coisa que acontece com ele foi Deus ter enviado para ele o filho com sindrome de down.
ele era apaixonado pelo muleque.
esse post mistura sentimentos. revolta, dó, felicidade...
calma que eu to meio fora de área ainda...
bja
eu nao sei o q eu teria respondido. talvez eu tivesse ajudado o menino mais novo a espanhar o pate de pao-de-queijo babado na parede ou na cara do pai.
so espero q a forma de autismo do menino nao seja tao branda pra q ele nunca perceba a diferenca q os pais devem fazer em relacao aos filhos.
nao q seja tarefa simples ter um filho especial (os pais precisam ser ainda mais especiais pra aguentar), mas chamar um de verdadeiro e o outro de fardo me parece uma crueldade enorme pra quem ja tem um grande problema na vida.
q bom q o menino autista teve alguns momentos de atencao decente vindo de vc, pq provavelmente ele nao deve ter dos pais.
e pra finalizar, tb nao to com odio do sujeito, nao eh isso. a vida dele nao eh facil. mas eh q tudo na vida eh uma questao de "wording". ele podia ter dito de outra forma. a palavra "normal" seria ruim tb sob o aspecto humano, mas teria pelo menos um respaldo estatistico. agora "de verdade" eh muito duro.
o sujeito deve ter sofrido (ou ainda estar sofrendo) muito pra classificar dessa forma o proprio filho.
mas podia ser pior. ele podia ter chamado o menino de "entulho", "atraso", "castigo" ou coisa pior.
pena eu ter ficado tao chocado, senao eu escreveria algo sobre o post... hmpf!
em tempo: i am father material, also... rs
Que linda história, meu bem! mas voce tem razão, não é possível fazer um comentário direto, há tantos ângulos na vida dessa gente....
ok, acho q nao entendi direito a historia...
Goosebumps!
pois é giacca. eu também nao entendi a história direito. só estava tentando contar o que eu vi. o que eu senti seria muito mais difícil de contar.
eu vi um pai apaixonado por um filho e mortificado pela falta de sorte do outro. ao mesmo tempo vi um narciso apaixonado por si próprio e achando feio tudo que não é espelho. ao mesmo tempo vi uma pessoa sofrendo e aceitando a dor com uma honestidade tão crua que chega a ser chocante. ao mesmo tempo tive medo de ser tão vil e mesquinha a ponto de entender o que ele queria dizer. ao mesmo tempo me senti aliviada por ser humana e cheia de falhas e imperfeita como me mostrava alí aquele cara igual a mim. eu queria poder sorrir ao mais velho e mostrar simpatia por sua má sorte, mas ele não ia poder aceitar ou mesmo compreender a minha simpatia do jeito que eu queria ser compreendida. e tive raiva da vida por fazer uma sacanagem tão grande com uma criança de colocá-la no mundo e limitar justamente sua capacidade de sentir o que faz a vida valer a pena. e tive ódio de pensar que o destino dele estava sendo tão facilmente aceito que talvez ele perdesse a chance de tentar se desenvolver por falta de investimento alheio.
enquanto isso eu não podia ver mais nada porque o pequeno se jogava sem qualquer cautela nos meus braços e a urgência do cuidado com aquela criaturinha me fazia esquecer de absolutamente todo o resto do mundo.
life is a bitch. life is just pure gift.
Já li crônicas profundas. Pesadas. Raras as que me fizeram soltar um "daaaamn..." como essa sua história.
Postar um comentário